quarta-feira, 20 de maio de 2009

A propósito do Caso Agnés de Garfinkel

Jornal Público
Domingo, 12 de Março 2006


Nuno espera belo novo "BI" para casar

As crises de identidade atacam nas diversas fases da existência - na infância, na adolescência, na vida adulta. O processo de mudança de sexo é moroso. Ele iniciou-o em 2001 e ainda lhe falta uma operação e nove meses para mudar de nome

Nasceu rapariga, mas nunca se identificou com o género feminino. Em criança, tentava, com frequência, urinar de pé. A mãe "via-se aflita". A ama "diz que era uma tristeza, que só queria usar calças e fatos de treino". Nunca entrou em "conversa com bonecas, operava-as todas".

Não sentiu rejeição na escola. "Achavam piada. Era uma maria-rapaz, queria era jogar futebol, batia em toda a gente", recorda. O pai ria-se, não tinha "uma rapariga pindérica". Quando lhe começaram a aparecer os seios, "foi um desespero". "Dava-lhes murros." Passou a usar t-shirt na praia. "Eu dizia que o meu sonho era ser homem, mas não sabia que era possível."

Com o desabrochar da sexualidade, Nuno passou a olhar para as raparigas, embora não arriscasse dizê-lo. A pressão da mãe, da ama, da madrinha, ia em crescendo. Chegaram a inscrevê-lo na Opus Dei - "foi um verdadeiro sucesso, fui a Paris ver o Papa. Estava tão revoltado. Para chatear, fazia tudo ao contrário, lembro-me de urinar de porta aberta".

Usava um elástico à volta do peito, para esmagar os seios. Tudo nele era tipicamente masculino. O seu comportamento, a sua roupa, o seu cabelo. Frequentava o 12.º ano. A crise de identidade doía como nunca. Desabafou com uma das suas melhores amigas, que sempre fora heterossexual. Sabia-o com nome feminino, mas via-o como rapaz. Algo de grandioso despontou.

O pai "ficou maluco"

Foi nessa altura que Nuno descobriu que podia mudar de sexo. Viu a transexual Rute Bianca num programa de televisão. "Andei três anos, de psicólogo em psicólogo, e ninguém sabia dizer nada. Até que vi, num carro à minha frente, uma gaja sempre a arranjar-se. Era a Rute Bianca. Foi ela que me indicou onde havia de ir." Já antes, Nuno deixara um alerta da Internet e recebera um telefonema de alguém a dizer ter informações. "O desespero era tanto que meti-me no carro de pessoas que nunca tinha visto." Nuno tinha 18 anos, soube que podia operar-se, enfrentou a família.

A mãe aceitou a decisão, sem surpresa. A ama apoiou. A avó pediu-lhe que nunca mais a visitasse, por "vergonha". E o pai "ficou maluco", pediu-lhe que o deixasse morrer primeiro. Saiu de casa. A família da namorada também reagiu mal. Mas tudo isso já lá vai.

Principiou o programa em Setembro de 2001. Fez uma batelada de testes nos Hospitais Universitários de Coimbra, que repetiu no Júlio de Matos, em Lisboa, onde iniciou terapia de grupo. Eram "para aí 30" pessoas, quase todas como ele. "Foi um alívio enorme pensar que havia mais."

À espera da "libertação"

Entre Junho de 2004 e Janeiro de 2006, fez cinco cirurgias. Ainda falta uma, mas não se queixa. "Tenho um colega que já foi ao bloco operatório dez vezes, tem tido rejeições."

O corpo e o espírito de Nuno encontraram-se, por fim. Já não tem seios, nem vagina. Tem "erecção, sensibilidade". Já não precisa de apoio psicológico. Agora, já só precisa do seu novo bilhete de identidade.

Não tem nada em seu nome - casa, carro, conta bancária. Está tudo em nome da mãe, "senão era a galhofa". Basta-lhe o que sofre no centro de emprego. "Cada vez que vou lá, é uma risota. Já tentei de tudo, desde ginásios, supermercados, ninguém me dá trabalho."

É licenciado em Educação Física. O director de curso punha-lhe o nome de rapaz nas pautas, no estágio, "em tudo" o que era visível ao exterior. E fazia documentos com o nome legal para registo oficial. Alguns colegas gozavam e Nuno sabe que "seria pior se fosse ao contrário", que o preconceito ataca mais os transexuais masculinos-femininos.

"Por causa do meu nome, não me dão emprego e, para mudar de nome, tenho de ir para tribunal", meneia. A falta de regulamentação é o entrave. "É preciso ir ao Instituto de Medicina Legal fazer perícia, pôr um processo ao Ministério Público e isto tudo custa à volta de três mil contos [15 mil euros]." O processo foi iniciado há dois anos. O julgamento foi marcado para Dezembro. Será "a libertação". O velho assento de nascimento será "rasgado, queimado, incinerado". Nuno poderá então casar-se com a mulher que com ele afrontou o mundo e a ele se uniu há quase sete anos. Já partilham um apartamento com vista para o mar, já têm almoços familiares aos domingos, como qualquer casal.

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