segunda-feira, 21 de maio de 2012

A propósito do corpo


O simpósio sobre transsexualidade na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto teve o condão de criar um conjunto de perplexidades que desde sempre me assolaram. Dele ressaltou a ideia que o diálogo entre as ciências sociais e a medicina continua tenso, pois cada uma destas reivindica o saber para justificar as intervenções no corpo. As primeiras, que muitas vezes incorporam o discurso do activismo, possuem resistências face ao segundo.
Na elaboração da minha dissertação de mestrado, entrei em contacto com um conjunto de pessoas que sofreram intervenções cirúrgicas com propósitos estéticos. Em 2000, a cirurgia plástica tomava proporções que hoje em dia estão perfeitamente aceites pela sociedade no seu todo, congruentes com a presença de uma multiplicidade de modelos estéticos entretanto socializados. A preocupação com a imagem pessoal e sua manutenção, designada por muitos cirurgiões de síndroma de Bay Watch, continua a recorrer a técnicas cirúrgicas e não cirúrgicas com o objectivo último de construir uma imagem individual mais congruente com o self. No caso da cirurgia plástica, podemos encontrar um padrão normativo e comportamental fundamentado por uma ordem cultural global e por uma narrativa científica que adjudica idoneidade a um primeiro grau de intervenção técnica. Neste caso, a relação que o indivíduo estabelece com o seu corpo enquadra-se nos parâmetros da avaliação contínua do presente biológico que sonha transcender a delapidação por via do grande conhecimento da ciência médica, exemplo de um modelo de racionalidade científica que se encontra instalado. O que nitidamente se constata é que "o conhecimento do conhecimento científico", explicado pela penetração desta racionalidade operativa no mundo das relações sociais, é garante, a um tempo, da decisão de partir para a cirurgia, mas que, num segundo tempo, quando falha, levanta imensas questões metodológicas e pessoais. Aparentemente, qualquer objecto que tenha por trás o grande conhecimento domesticador da ciência, apresenta-se com alguma capacidade de neutralização do erro. 
No dito seminário onde estive presente, o mesmo discurso surgiu e provocou-me esta reflexão, subsidiária das reivindicações por parte de grupos transsexuais e que agora que partilhar com o leitor. Importa, antes de mais, fazer um breve resumo e colocar nos respectivos lugares os diferentes actores sociais. De um lado, apresentava-se o saber médico, representado por psiquiatras, endocrinologistas, cirurgiões, entre outros actores com laços científicos de proximidade; do outro, os activistas dos direitos homossexuais, transsexuais e bissexuais. Entre eles todos, subsistiam subtis diferenças e persistia um conjunto de problemas intrínsecos à demarcação de género: o transsexual, aquele que procura fazer transmutações de símbolos corporais manifestados numa corporalidade específica, associados a habitus particulares e emissão de comunicações carnais, encontra-se despojado de uma cultura de visão e divisão. Neste sentido, a questão transsexual esgota-se em si mesma e, como tal, deve ser analisada com particular atenção. Usar as mesmas fórmulas para perceber problemas distintos é um erro de aproximação metodológica, etnocêntrico e naturalizador. E é aqui que aparece o primeiro ponto de tensão. Mais uma vez, de um lado, os transsexuais a reivindicarem a despatologização da função transformativa e do outro, o saber médico, que opera sobre um mapa cognitivo que naturaliza as diferenças de género e não as entende como construção cultural, denotando alguma rigidez e fraco esforço para entrar em diálogo com o património conceptual das ciências sociais. Mas não são os únicos a laborarem num aparente etnocentrismo. Providos de uma cultura de afirmação e demarcação mais sólida e satisfatoriamente implantada, os homossexuais entram várias vezes em fricção com os transsexuais por provocarem um problema de lógica na construção da sexualidade. Após a desconstrução da normatividade heterossexual, recebendo o precioso auxílio de activistas e autoras feministas, não negligenciando o reconhecido trabalho de pesquisa teórica de autores do campo das ciências sociais, não possuem ferramentas culturais que lhes permitam entender uma outra alteridade sexual julgando, paradoxalmente, a sexualidade de uma forma dicotómica e estabelecida sobre dois termos que penalizam: homo e hetero. Ser transsexual é habitar numa terra de ninguém e o saber médico, patente no discurso dos próprios urologistas que tivemos ocasião de registar, reforça a sobreposição entre uma genitália particular e o seu uso normativizado, segundo um padrão hetero ou mesmo homo. Existe apenas mudança de sexo, não de género, classificam. Os transsexuais parecem desprotegidos face a uma cultura gay dominante, creditada em acção pública entretanto despatologizada, e face ao saber médico, que insiste na perspectiva que a transsexualidade é uma patologia mensurável em termos clínicos e médicos e se mostra receoso em avançar para uma operação de mudança de sexo, cujo erro poderia ser dramático no âmbito do sistema nacional de saúde. Mudar de sexo é profano, para o mesmo saber médico que despatologizou a homossexualidade e para a cultura gay que não inclui a mudança de sexo na marcação homossexual, que se serve de um corpo para definir uma sexualidade, como acontece em outras circunstâncias com os heterossexuais. Tal como em actividades que exigem do corpo uma marcação objectiva em consonância com as prescrições orientadoras das práticas individuais, somatizando a cultura e sancionando comportamentos divergentes, também a cultura gay naturaliza a função objectiva da sua sexualidade após desnaturalizar a abordagem dicotómica da sexualidade e, enquanto colectivo que legitima práticas individuais na gestão dos corpos, impõe esse comportamento específico. A transsexualidade implica desencorporação e encorporação no normativamente idealizado pela sociedade e pelos grupos. A uma desvinculação biológica sucede uma vinculação cultural, pressionante. Contudo, na sua globalidade e em casos muito específicos, o discurso transsexual é povoado de inúmeras incertezas. Há quem não queira fazer alteração de sexo e se sinta confortável com a indefinição de género, reiterando que pelo facto de se possuir uma genitália  específica isso não signifique uma marcação nesses termos. Há quem procure operar redefinições das classificações linguísticas. E também há quem rejeite liminarmente que a decisão de resolução do transtorno de identidade sexual fique ao critério do saber médico. Se Foucault assinala o aparecimento de uma moral auto-centrada no indivíduo que lhe permitiu reflectir sobre a condição moral, julgamos que actualmente este se afigura como elemento chave de um complexo operativo que aliou biologia, reflexividade e técnica para se produzir a si próprio como imagem mais congruente da sua individualidade. É assim evidente a proclamação da sua dualidade: apresenta-se com presença simultânea nos campos da natureza e da cultura. Natureza, porque uma série de discursos o fizeram crer neste tipo de aparente exterioridade do próprio corpo, facultando-lhe uma epistemologia que sustenta a sua expressividade, sendo esta súmula do segundo termo, a cultura, que, todavia, não se extingue por aqui. A cultura, enquanto sistema de conhecimento, como diz Leach, ou de comunicação, segundo Hall ou Bourdieu, possui ramificações que se dirigem a um mosaico de opções legitimadoras da tarefa, tornando-se mais efectivas com uma globalização de referentes culturais apoiadas numa rede de infra-estruturas sociais que propiciam um comportamento cultural. Os grupos LGBT conhecem activismo a nivel planetário. As relações entre corpo e tecnologia, aquelas que me interessou tratar neste texto, são mais do que suficientes para evocar um conjunto de problemas disciplinares e metodológicos que têm provado ser focos de ansiedade no olhar tutelar das ciências sociais. Nesta reflexão, levanta-se a questão problemática das associações entre natureza e cultura, entre razão e desejo, prementes na compreensão da actividade biológica e corporal desenvolvida pelo indivíduo. Ao contrário da cirurgia plástica estética que estudei, mediante a qual se procura vencer a idade transcendendo a sua delapidação, aqui procura ultrapassar-se o corpo utilizando tecnologias que permitam a emancipação pessoal. É este o ponto referencial da discussão, a individualidade. Todavia, sem uma narrativa estável que permita reivindicar um procedimento, em confronto com a cultura gay e com o saber médico-cirúrgico, todo ele povoado de tensões derivadas do uso estável e idóneo da técnica que, tal como a ciência é imprevisível, teme as intervenções directas na carne e arrasta este temor às sub-disciplinas de suporte, os transsexuais encontram-se abandonados e não conseguem ser indivíduos. Neste sentido, é importante discutir estes assuntos porque a sociologia deve possuir, como Durkheim reivindicava, um cariz de justiça social.

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